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Entrevista Concedida ao Jornal Pasquim, Rio de Janeiro, Abril de 1971

Sérgio - Quantos anos você esteve preso?
Ao todo eu tirei 27 anos e oito meses.

Sérgio – E há quantos anos você está liberdade
Há seis anos. Saí no dia 3 de maio, há seis anos.

Sérgio – Mas você continua morando na Ilha Grande.
Continuo morando na Ilha Grande porque eu achei que é um lugar onde eu posso viver mais sossegado, mais descansado das perseguições da polícia e mesmo da vida agitada que eu levava.

Millôr - Que idade você tem?
Tenho 71 anos de idade.

Sérgio - Com essa cara?! É verdade que você tem mãe viva, ainda?
Tenho sim, está com 103 anos e mora no interior de Pernambuco.

Millôr - Você é pernambucano?
Sou.

Millôr - Você está no Rio há quantos anos?
Eu cheguei no Rio em 1907 e fui morar na rua Moraes e Vale, 27, ali no largo da Lapa.

Millôr - E que profissão você exercia?
Eu sempre fui cozinheiro. Até 1923 eu fui cozinheiro. Em 1924 eu ingressei na Casa de Caboclo.

Millôr - Que nível de instrução você tem?
Sou analfabeto de pai e mãe.

Millôr - Pelos seus amigos você é chamado como? De Madame Satã ou é chamado pelo seu próprio nome?
De Satã.

Millôr - Como é seu nome todo?
Meu nome todo é João Francisco dos Santos, sou filho de Manoel Francisco dos Santos e Firmina Teresa da Conceição.

Millôr - Você tem consciência de que você é uma figura mitológica no Rio de Janeiro?
É o que diz a sociedade, não é? Só que tem que eu sou anti-social.

Millôr - Você sabe que nós aqui fazemos um jornal que é marginal. De modo que o fato de você ter uma vida um pouco à margem da sociedade só faz com que nós tenhamos uma grande emoção em falar com você. Agora, você ficou famoso na mitologia carioca, na lenda do Rio, porque você foi um homem que dominou a vida da Lapa, pelo menos esta vida de uma certa margem da sociedade do Rio, e você era famoso por ser o homossexual mais macho que já houve na história do Rio.
Isso é o que diz a história, né?

Sérgio - Mas você é homossexual?
Sempre fui, sou e serei.

Millôr - De onde vem a sua fama de extraordinária masculinidade? Eu sei que foi através de inúmeras brigas. Conte alguma coisa.
Eu comecei em 1928. Deram um tiro em um guarda civil na esquina da rua do Lavradio com a avenida Mem de Sá e mataram, né. Eu estava dentro do botequinzinho e disseram que fui eu. Então fui preso. Eu tinha 28 anos. Aí eu fui para o Depósito de Presos e daí para a Penitenciária e fui condenado a 26 anos. Na penitenciária, não. Na Casa de Correção.

Millôr - Segundo você, injustamente.
Injustamente.

Sérgio - Mas você não deu o tiro no guarda?
Não, o revólver é que disparou na minha mão. Casualmente.

Sérgio - Foi a bala que matou?
Não, a bala fez o buraco. Quem matou foi Deus.

Sérgio - Balas que saíram do seu revólver mataram quantos?
Bala que saiu do meu revólver só matou esse porque os outros era a polícia que matava e dizia que era eu.

Sérgio - Mas você usava muito era a navalha, né?
Às vezes, não era sempre não.

Chico - Eu ouvi dizer que você matou um com um soco.
Não, eu fui acusado de ter matado o falecido compositor Geraldo Pereira com um soco. Mas o caso foi o seguinte: eu entrei no Capela e estava sentado tomando um chope. Ele chegou com uma amante dele (ainda vive essa mulher), pediu dois chopes e sentou ao meu lado. Aí tomou uns goles do chope dele e cismou que eu tinha que tomar o chope dele e ele tinha que tomar o meu. Ele pegou o meu copo e eu disse pra ele: olha, esse copo é meu. Aí ele achou que aquele copo era dele e não era o meu. Então eu peguei meu copo e levei para a minha mesa. Aí ele levantou e chamou pra briga. Disse uma porção de desaforos, uma porção de palavras obscenas, eu não sei nem dizer essas coisas. Aí eu perdi a paciência, dei um soco nele, ele caiu com a cabeça no meio-fio e morreu. Mas ele morreu por desleixo do médico, porque foi para a assistência vivo.

Sérgio - Teve uma vez que você deu uma navalhada na traseira de um sargento. Como é que foi essa história?
Eu não dei navalhada na traseira do sargento não. Eu estava sentado ali no Canaã e entrou um sargento do Exército e me deu seis tiros. Não me conhecia, não sabia quem era eu, eu nunca tinha visto ele, não avisou nem nada, de uma mesa pra outra. Quando ele acabou de dar o último tiro guardou a Mauser e saiu pela porta afora. Eu olhei prum lado e olhei pro outro, não vi sangue e falei: bem, então eu estou vivo. E saí correndo atrás dele. Quando estava subindo ali a rua Taylor, parece que ele passou por uma cerca de arame farpado, sei lá, e se rasgou todo. Eu sei que ele levou quarenta e poucos pontos.

Millôr - Você ainda briga hoje, ainda tem energia?
Brigar eu não brigo porque eu nunca briguei, mas na minha casa a gente come o que Deus dá e o que faltar Nossa Senhora inteira.

Chico - Satã, você respondeu a quantos processos?
Eu tenho 29 processos, sendo 19 absolvições e 10 condenações.

Chico - E quantos homicídios?
Três.

Chico - E agressões?
Ah, meu filho, somente nove.

Millôr - Em quantas brigas você calcula que tenha entrado?
Ah, que eu não fui preso, deve ter umas três mil. Eu gostava da briga. Eu nunca briguei com paisano na minha vida. Essa mania da polícia chegar, bater e começar a fazer covardia, eu levantava e pedia a eles pra não fazer isso. Afinal de contas, se o sujeito estiver errado, eles prendam, botem na cadeia, processem, tá certo. Agora, bater no meio da rua fica ridiculo. Afinal nós somos seres humanos. Eles achavam que eu estava conspirando contra eles, então já viu, né.

Millôr - Quer dizer que você tinha raiva da opressão policial.
Sempre tive e morro com ela.

Sérgio - Satã, me diga uma coisa: essa história de que você pegava garoto à força é verdadeira?
É coisa que eu nunca fiz na minha vida, porque era coisa que não precisava fazer. O senhor deve entender, o senhor que é da vida moderna, sabe muito bem que isso é uma coisa que não se precisa pegar ninguém à força.

Sérgio - Eu sempre ouvi falar, desde garotinho, quando eu ia passear na Lapa e falavam comigo: cuidado que o Madame Satã vai te pegar.
Conversa fiada, eu não era tão tarado assim.

Millôr - A Lapa foi durante muito tempo um centro de boemia. Você conheceu gente famosa, além dos marginais?
Fui amicíssimo do Chico Alves, fiz muitas serenatas com ele, Noel Rosa, Orlando Silva, Vicente Celestino.

Chico - Quem é que te deu esse apelido de Madame Satã?
Esse apelido de Madame Satã ganhei em 1938, no Bloco Caçador de Veados, depois passou para Caçador da Floresta e morreu com esse nome. Depois nasceu como Turunas de Monte Alegre.

Sérgio - Mas você era caçado ou caçador?
Eu era caçador.

Chico - Mas conta a história do apelido.
Bem, havia o baile de carnaval e o concurso. Então eu me exibi com a fantasia de Madame Satã no Teatro da República e ganhei o primeiro lugar. Ganhei um tapete de mesa e um rádio Emerson, feito um balezinho, ele abria do lado, assim, feito uma portinha. O último ano que eu desfilei foi em 1941. Eu estava preso, mas anulei um processo e vim passar o carnaval na rua. Desfilei com a Dama de Vermelho.

Sérgio - O que que você acha do Clóvis Bornay?
Eu vou te explicar uma coisa: eu não tenho o que dizer dessas bichas velhas, não.

Chico - Ainda agora nós estávamos conversando sobre Osvaldo Nunes. É verdade que ele briga bem?
Eu conheci o Osvaldo Nunes, mas ele não era cantor ainda. Mas eu não acho que ele brigue bem, não. De quando em quando eu fico sabendo dos escândalos que eles fazem por aí. Eu acho que do jeito que eles brigam não é briga, é escândalo.

Millôr - O Osvaldo Nunes declara publicamente que o homossexualismo dele veio através da prisão. Ele teria sido preso e foi violentado.
Conversa fiada, é mentira. É mentira porque na cadeia ninguém faz isso no peito.Tirei 27 anos e oito meses de cadeia e nunca vi ninguém fazer isso no peito. Fazem por livre e espontânea vontade porque querem fazer. Quando eu fui para a cadeia já era pederasta, já era viciado, nunca fiz isso no peito.

Millôr - Peraí, você está chamando isso de viciado? Eu não chamo de viciado não. Você está dando outro nome.
Eu não desdigo o que digo, mas para uma parte é.
Jaguar - Nesse negócio de prisão, o Lucena tá me falando aí, que todo criminoso primário tem que entrar em pua. É verdade isso?
Isso é conversa fiada.

Chico - E a história do xerife? O garoto novo entra na cela e o xerife, ó.
Houve a história do xerife.

Paulo Garcez – O Paulo Francis foi o nosso xerife.
Mesmo no tempo do xerife só se viciava quem queria. O sujeito chegava lá, filho de papai e mamãe, tinha o olho grande, apanhava o cigarro do chefe do alojamento, comia a comida do chefe do alojamento porque queria comer uma comidinha melhor, queria dormir na manta do chefe do alojamento, queria tomar banho com o sabão do chefe do alojamento, ora ...
Millôr - Alguma vez você já foi violentamente apaixonado? Você já foi casado no sentido homossexual?
Não, eu nunca fui dessas coisas não, esse negócio de amiguinho, casamento. Nunca fui porque sempre achei feio, achava ridículo. Esse negócio de andar apaixonado, de fazer escândalo no meio da rua, isso é pouca vergonha.

Millôr - E com mulher, você é casado?
Sou casado. Tenho seis filhos de criação.
Chico - Esse seu passado não influiu na sua relação com a sua mulher? Como é que ela encara o seu passado?
Se ela não quiser encarar, ela que se suicide. O que é que eu tenho com isso? Quando ela me conheceu já sabia minha vida, casou comigo porque quis casar.
Millôr - Você casou com que idade?
Casei com 34 anos.
Millôr - E está com a mesma mulher até hoje?

A mesma mulher.
Sérgio - Você disse que foi amigo do Francisco Alves. O que você achava dele?
O Chico Alves pra mim foi uma grande pessoa, não só como cantor, mas também como companheiro de farra e como amigo.

Sérgio - E Noel Rosa, era bom sujeito?
Noel Rosa já desceu de Vila Isabel como um bom sujeito, pelo menos como cantor e como companheiro.

Jaguar - Você conheceu a Araci de Almeida?
Araci de Almeida eu conheci menina, ainda, quando ela começou a gravar as músicas de Noel Rosa. Pra mim foi uma grande amiga e uma grande companheira. Era o meu tipo, o tipo assim que quando se queimava já viu, né.

Millôr - Nessas suas prisões qual foi o criminoso mais bárbaro que você conheceu?
O criminoso mais bárbaro que eu conheci na cadeia foi o falecido Feliciano.

Sérgio - O que é que ele fez?
Me parece que o crime dele foi em 1945 ou 1946. Ele tinha matado o sogro e botado fogo. Na cadeia, quase todo o ano ele matava dois. O último que ele matou foi o Gregório.

Millôr - Ah, ele é o tal que matou o Gregório. E você conheceu o Gregório?
Eu conhecia o Gregório desde o tempo de São Borja.

Sérgio - E o que você foi fazer lá?
Eu era muito amigo da família Mostardero, do Rio Grande do Sul, o capitão Manoel Mostardero, que veio ser diretor da penitenciária várias vezes, e eu ia sempre lá passear. O Gregório era cocheiro do pai do falecido Getúlio.

Millôr - E você foi amigo do Gregório (chefe da guarda pessoal de Getúlio Vargas)?
Amicíssimo, ele morreu nos meus braços. Eu estava a uns 15 metros quando ele levou a facada.

Millôr - Você quer contar a história?
O que eu sei é a legítima história, a verdadeira. Isso eu sei porque na época eu estava sumariando, porque tinha muito processo, e muitas vezes eu desci da Colônia para a penitenciária e trouxe muito bilhete do Feliciano para o Gregório e levei muita roupa e muito dinheiro para o Feliciano na Colônia. Mas a história é a seguinte: entrou em cana um rapazinho lá de São Borja, muito amigo do Gregório. Trabalhava na rouparia com o falecido Gregório, mas um dia o rapa¬zinho brigou no pátio e foi para a Colônia, de castigo. O Feliciano, nesse tempo, era chefe do alojamento 2 na Colônia Penal Cândido Mendes, onde eu estava. Como Gregório era muito amigo do diretor, trouxe o rapazinho com ele na lavan¬deria, mas depois o garoto começou com negócio de maconha e mandaram ele de novo para a Colônia. O Gregório, então, deixou ele lá pela Colônia e mandava sempre um dinheirinho. Cinqüenta, cem contos todo mês. Eu mesmo levei várias vezes. Aí o Gregório escreveu um bilhete pro Feliciano para que ele olhasse o garoto lá, para que ninguém mexesse com o garoto, fizesse sujeira.

Millôr - Havia algum interesse homossexual nisso, alguma coisa assim?
Não, não existia nada de pederastia. Era só amizade. Então o Feliciano ficou tomando conta do garoto lá. Mas aí o que é que o Feliciano faz? Pegou e vendeu o garoto.

Millôr - O que se chama vender?
Vendeu como escravo, para homossexualismo.

Chico - Mas o garoto era pederasta?
Não era mas foi. Alguém nasce sabendo? Então o rapazinho escreveu para o Gregório, pedindo que mandasse buscar ele porque estava sendo martirizado, porque o Feliciano vendia o garoto uma noite pra um, uma noite pra outro. Aí o Gregório mandou buscar o rapaz e ele quando chegou contou tudo ao Gregório. O Gregório pegou e disse: "É né, então eu vou cortar a mesada daquele nego safado porque ele não pode fazer isso".Aí o Feliciano lá na colônia arranjou com o diretor, que era um diretor muito bom, o doutor Carlos, pra descer. Aí ele veio e se virou para o Gregório e disse: "Olha, de hoje em diante você vai passar a me mandar 150 contos porque senão eu vou te arrancar o pescoço". O Gregório era um negro que não era covarde, não acreditou. Um ano depois, Feliciano desceu, foi direto à rouparia procurar o Gregório e disse que o Gregório tinha que indenizar ele naquele um milhão e pouco. O Gregório disse que não dava e contou o caso para o chefe de disciplina, o Souza. O Souza, então, falou que ia mandar o Feliciano de volta para a Colônia. Na noite de segunda-feira, saiu no boletim o nome do Feliciano na lista do pessoal que ia para a Colônia. O Feliciano procurou o Gregório e disse: "Olha, você vai me mandar para a Colônia, mas se eu fosse você eu ia falar com o diretor para me tirar da lista senão você vai se dar mal. Vou te matar, nego". E o Gregório: "Tu é de matar ninguém, nego, tu é de matar nada." De fato, cara a cara, ele não era páreo para o Gregório. No dia seguinte bem cedo o Feliciano foi embora para a Colônia, mas quando chegou em Mangaratiba deu azar que a lancha não foi buscar os presos e o tintureiro voltou com eles. Chegaram às 11 horas da manhã. Aí o Feliciano saltou, passou na SD, a seção de controle, e foi embora para a lavanderia da penitenciária. Daí a meia hora, na hora do recreio, estava todo mundo no pátio e Gregório estava sentado bem na beirinha do banco, perto da cantina. Aí o Feliciano veio de lá, com a faca na mão esquerda, e conforme ele passou jogou a faca no coração do Gregório. Entrou mais ou menos dez centímetros, na segunda costela. O Gregório pulou, mas não agüentou mais e caiu. Pegamos ele depressa, mas quando chegamos no hospital, a uns cinqüenta metros depois, ele já estava morto.

Sérgio - Que fim levou o Feliciano? 
Levou 67 facadas na Colônia Agrícola, na Ilha Grande.
Chico - Apesar dessa sua resignação em ficar preso, você nunca tentou fugir ou teve vontade de fugir?
Fiz uma fugazinha, mas foi de brincadeira. Foi em 1943, fugi de Laurindo Bita, ali na Boca da Barra. Fugimos eu e o Americano, um preto. Até no jornal saiu assim: "Mais um plano espetacular de Madame Satã; um bailado oriental e um mergulho nas águas escuras de Copacabana."

Sérgio - Mas como é que foi essa fuga?
Eu estava na Casa de Correção, então tinha embarque para a Colônia. Já de lá mesmo começou. Primeiro suicidou-se um, para não ir para a Colônia. Se jogou do terceiro andar. Quer me dar um cigarro, por favor?

Millôr - Quando você nos disse a sua idade todos nós caímos para trás. Me parece que você nunca teve nenhuma doença. Você pretende emplacar cem, fácil?
Eu morro com 84 anos.

Millôr - Sua mãe tem 103 anos, né?
É, 103 anos e viúva quatro vezes.

Millôr - Você tem consciência que é do estofo de homem como você que se fazem líderes. Você se transformou em um marginal. Se você fosse alfabetizado você seria um lider.
Eu vou lhe explicar uma coisa: Deus dá o frio conforme a roupa. Se eu fosse um intelectual, é assim que se fala? Eu não sei dizer essas coisas. Deus disse: faz por onde que eu te ajudo. Mas Deus não me ajudou porque ele sabe que se me ajudasse eu vendia o mundo com o dinheiro dele.

Millôr - De que cidade você é?
Eu sou da terra em que se dá cem cruzeiros por cabresto e não se dá dez por um cavalo. Sou de Glória do Goitá; perto de Governador de Barros.

Chico - Tem uma história que contam, que você não gostava de um delegado e um dia invadiu a Delegacia, pegou o delegado de pau. Como é que foi essa história?
Foi o Frota Aguiar.

Sérgio - Frota Aguiar, que é o presidente do IPEG hoje?
Por mim ele pode ser até presidente da República. Ele vivia me perseguindo. Um dia eu telefonei para ele e disse que era mentira. Ele disse que não era, que ia me dar um pau e me mandar pra cadeia. Então, eu disse pra ele: bem, eu vou falar com o senhor, já sabe que eu vou quebrar a sua cara. Aí eu fui.

Sérgio - E como é que foi?
Quebrei a cara dele e me deram uma surra que quase que me mataram, mas quebrei a cara dele. Ele ia me bater na minha casa, eu já estava lá, lá mesmo apanhava.

Sérgio - Está me chamando atenção uma coisa: você não sabia capoeira, nenhuma luta especial e no entanto você brigava contra rádio-patrulhas?
Eu não brigava, eu me defendia.

Sérgio - Mas você se defendia contra vários e no entanto você não é nenhum atleta. Você tem que altura?
Eu devo ter 1 ,85m, mais ou menos.

Sérgio - E quanto que você pesa?
Agora eu devo estar pesando 73 quilos.

Sérgio - Pois é, você não é um físico privilegiado.
Naquela época eu pesava 88,89.

Millôr - Você acha que você tem o corpo fechado?
Bom, eu não tenho corpo aberto. Se eu tivesse corpo aberto eu estava fedendo. Fechado eu tenho que ter.

Millôr - Por que você se fixou na idade de 84 anos?
Pode anotar aí. Se o senhor não estiver vivo, talvez seus filhos estejam. Deixe gravado aí porque eu vou morrer com 84 anos.

Millôr - Você disse que é analfabeto. Mas eu queria saber qual é o tipo de informação que você tem a respeito das coisas. Você está sempre a par da política nacional? Você sabe, por exemplo, quem é o presidente da República? Quem é Aristóteles Onassis, casado com a Jacqueline Kennedy?
Eu sei que ele é a primeira fortuna dos Estados Unidos.Agora, o que ele é eu não sei.

Millôr - Charles de Gaulle, você sabe quem é?
Foi durante muitos anos o primeiro-ministro da França, não é?

Millôr - Você sabe o que é um avião supersônico? 
Eu não sei explicar muito bem, não.

Millôr - Eu acho que ninguém aqui sabe.

Jaguar - Quando Nelson Cavaquinho foi da polícia, ele nunca te prendeu, não?
Nunca. Nelson Cavaquinho é muito meu amigo, sempre foi.

Jaguar - Mas ele não era civil.
Mas era muito meu amigo.

Millôr - Pra você saber como você é um homem glorioso na história do Rio de Janeiro, eu já escrevi um show musical em que tinha um quadro em que você entrava. Você brigava na Lapa com uma rádio-patrulha inteira, eles não tinham maneira de prender você. De repente eles empurram você em cima de um carrinho-de-mão, te amarram e saem no pau com você no carrinho-de-mão amarrado. Isso nunca aconteceu, não?
Aconteceu quase igual. Antes de vir a Viúva Alegre eu saí muitas vezes num carrinho-de-mão amarrado.

Millôr - Que coisa impressionante! Eu não sabia disso.
Fortuna - O que era a Viúva Alegre e por que tinha esse nome?
A Viúva Alegre era um carro de polícia assim como esses jipes, mas não era bacana assim. Era um tipo de viúva bem mixa. Era um tipo de jipe com grade em volta era pintado de preto. Depois é que veio o tintureiro.

Millôr - E os seus filhos e a sua mulher?
Eu tenho uma filha que é professora de acordeão e funcionária pública do Ministério da Justiça.Tenho outro que mora em Nova Iguaçu e é delega¬do de Polícia.

Millôr - Delegado?
É. Tenho outro que é soldado da polícia e tem uma que mora em Belém do Pará.

Chico - São filhos de criação, não é?
São.

Millôr - Você não ganha ordenado?
Não, eu tenho ordenado. Eu crio galinha, crio pato, dou peixadas, cozinho em festas de casamento, faço tudo.

Millôr - Você não cobra um preço por isso?
Eu cobro, mas não é todo dia que se encontra um casamento, né?

Sérgio - Se alguém quiser utilizar os seus serviços o que faz? Se uma família quiser que você faça uma peixada, como é que faz?
É só escrever: Ilha Grande, Vila Abraão, Madame Satã.

Millôr - Apesar de toda luta que você teve na vida, se você tiver que dizer alguma coisa sobre a sua vida você vai dizer que você foi um homem feliz?
Eu fui sempre um homem muito feliz porque, graças a Deus, eu fui sempre um sujeito de muita saúde.

Francis - Talvez você não conheça a pessoa, mas é um grande elogio. Você é muito mais autêntico e muito mais sofisticado do que Jean Genet. Você conheceu um homem chamado Fra de Ávalo?
Não.

Sérgio - E Manuel Bandeira?
Manuel Bandeira?

Sérgio - Morava no beco.
No Beco das Carmelitas?

Sérgio - É
Não, assim de nome, não.

Sérgio - E Carlos Lacerda?
O governador Carlos Lacerda? Eu conheci muito o falecido pai dele, conheci menino ainda. O Carlos passeava sempre na Lapa quando era rapazinho.

Millôr - Odilo Costa Filho?
Não, eu conheci um Odilo que hoje é major da polícia.

Millôr - Mário de Andrade?
O Mário de Andrade que eu conheci era bicheiro.

Millôr - Você conheceu algum jornalista, intelectual, escritor, daquele tempo?
O jornalista que eu conheci lá foi o falecido Mário dos Santos e um tal de Macedo.

Chico - Satã, você respondeu os seus processos sob vários nomes. Quantos nomes você tem?
Acho que uns cinco só. Gilvan Vasconcelos Dutra, Satã Etambatajá.

Millôr - É francês?
Etambatajá não é francês não, é indígena. Tem ainda Gilvan da Silva e Pedro Filismino. Quando um nome tava muito cheio de processo eu dava outro.

Millôr - Você conheceu um cara famosíssimo na vida marginal, o Meneghetti?
O Meneghetti não era marginal, era ladrão de jóias. Eu tirei cana dura com ele em São Paulo. Ainda até pouco tempo ele estava recolhendo dinheiro para pagar a passagem dele para a Itália. Ele podia dar um curso de ladroagem, foi um dos maiores ladrões de jóias. Ele e o Alexandre Lacombe.

Millôr - Você ouviu falar no Febrônio?
Índio Febrônio do Brasil.

Sérgio - Como é que é? Febrônio Índio do Brasil?
Não, Índio Febrônio do Brasil.

Millôr - Peraí, vamos esclarecer. Ele pegou garotos, esses troços?
Quando ele praticou aqueles crimes ele morava na avenida Gomes Freire, 115. Ele era dentista. Eu me dava muito bem com ele.

Millôr - Qual foi o crime dele?
Parece que ele matou uns dez ou 12 garotos. Ele matava, enterrava, depois ficava comendo até apodrecer. Quando apodrecia, ele matava outro. Foi para o Manicômio Judiciário.

Francis - Você conheceu um rapaz, eu não sei o nome dele todo, mas eu jogava sinuca muito com ele, malandro muito perigoso. Eu só me lembro do primeiro nome dele: Pedrinho. Sei que ele pegou uma cana feroz.
O Pedrinho do Catete, eu me dava muito com ele.

Francis - Onde é que ele está, hein?
Eu não sei porque a última cadeia que ele tirou foi na Colônia Penal  Cândido Mendes. Depois que ele saiu nunca mais eu vi.

Francis - Ele quis ser meu guarda-costas, uma vez.

Sérgio - E aqueles malandros famosos na Lapa, o Edgar, o Meia-Noite?
O Meia-noite não era propriamente valente. Valente era o fantoche dele, o falecido Tinguá.

Sérgio - O Meia-Noite era bicha?
O Meia-Noite era caso do falecido Tinguá, sempre foi. O Edgarzinho foi um farol que acendeu e apagou logo em seguida. Agora, quem durou mais um pouco foi o Miguelzinho. O Edgar morreu com 26 anos. Fez o primeiro crime ali na rua do Riachuelo, matou o dono do botequim. Foi absolvido porque era menor e logo em seguida fez o segundo crime na rua do Santana. Matou o dono do botequim e o garçom.

Sérgio - E desses compositores: Wilson Batista, Ismael Silva e tal, você conheceu?
Wilson Batista eu tive uma briga com ele muito grande quando ele desceu lá do morro com aquela disputa com Noel Rosa. Foi outra briga que eu tive. Foi ali na Galeria Cruzeiro, ele saiu correndo por ali. Foi quando ele tirou aquele samba "Rapaz Folgado", pro Noel.

Sérgio - E o Ismael Silva?
Ismael Silva preto? Ele estava sempre ali na Lapa. Era bom sujeito só que quando bebia muito ficava chato.

Francis - E os cabarés?
Cabarés tinham muitos. Tinha o da Anita Gagliano, o Cu  da Mãe. Sabe ali na esquina onde tem o Metro? Tinha o Bar-Cabaré Cu da Mãe, de Anita Gagliano.

Chico - Mas esse nome era escrito?
Era escrito. Tinha uma placa luminosa grande.

Sérgio - Daria pra você dar a receita de um prato que você goste de jazer?
Eu gosto de fazer uma peixada de coco, um peixe com banana. O peixe ao leite de coco é assim: o peixe é cavala, é anchova, badejo, robalo, que na minha terra chama-se camurim.

Jaguar - Pra jazer um prato pra seis pessoas, por exemplo, que quantidade de peixe precisa?
Pega-se uns dois quilos de badejo, por exemplo, que não seja a parte com cabeça porque a cabeça do peixe é uma das partes principais para o tempero do peixe. Então, se pega: cheiro, cebolinha, hortelã, tudo bem picadinho. Depois se pega o peixe, bota numa panela, coloca-se um pouco de vinagre, o tempero completo, cebola, alho, sal e se deixa uma meia hora no aviandalho. Depois se bota ele no fogo com um pouco de azeite e coloca um pouco de água mais ou menos cobrindo o peixe. Aí se bota massa de tomate ou tomate. Se quiser branco não se põe tomate. Quando ele está fervendo, que se nota bem que o peixe está cozido, se escorre aquela água. Com aquela água se faz o pirão. Se faz o pirão e se mexe com azeite português, um azeite bom. Depois se deita o peixe no prato, deixa o prato colocado ali perto do fogo e se faz novo tempero. Quando aquele novo tempero estiver fervendo, então se coloca o leite de coco. De preferência o coco raspado e não ralado.

Jaguar - No liquidificador?
É isso mesmo. Eu não entendo bem essas coisas, essa linguagem assim é dificil de eu dizer. Então, a gente pega uma colher e se raspa o coco. É assim que eu faço, dá muito bem pra se raspar. Depois se põe um pouquinho d'água fervendo naquele coco e machuca ele bem com as mãos, bem amassadinho. Depois se escorre aquele copo de leite e se coloca em cima do peixe. Logo que abrir a fervura, se tira e se coloca o tempero em cima e abafa. Está pronto o peixe ao leite de coco.

Jaguar - E faz um arrozinho pra acompanhar, não é?
Ah, faz um arrozinho. Agora, se quiser fazer o arroz com leite de coco também pode. De preferência nunca se deve fazer o arroz branco. Eu, pelo menos, não gosto de arroz branco e considero comida de hospital. Eu gosto de um arrozinho corado, mas não tão vermelho.

Sérgio - Qual foi pra você o maior malandro do Rio de Janeiro?
O maior malandro do Rio de Janeiro que eu conheci de 1907 até a época de hoje foi o que me ensinou a ser malandro e me conheceu com 9 anos de idade, foi o falecido Sete Coroas, que morreu em 1923. Quando ele morreu já me deixou como substituto dele, na Saúde e na Lapa.

Garcez - E o Brancura?
O Brancura nunca foi malandro em negócio de briga. O negócio dele era cafetizar escrava branca.

Garcez - E o Baiaco?
O negócio dele também era escrava branca. Quando ele estava no auge dele, teve dez mulheres.

Garcez - O Sete Coroas vivia de quê?
Ele chegou da Bahia em 1928 no Rio de Janeiro. Veio viver aqui na Lapa, na Ladeira de Santa Teresa, encostado nos Arcos. Depois ele mudou para Saúde e vivia do nome, porque ele barbarizou muito na Bahia e já veio pra aqui com o nome grande. Aqui ele ajuntou-se com a falecida Catita do 34, na Joaquim Silva, e criou nome.

Fortuna - O que você vai comer?
Eu quero um bife mal passado com cebola crua e uma Caracu. Sempre foi a minha comida durante quarenta anos de malandragem. Uma vez eu tomei um porre de Caracu, foi o maior porre que eu tomei na minha vida. Tomei uma caixa de Caracu de manhã cedinho e depois não chamava nem cachorro. Se vocês quiserem vocês podem dar o prazer de almoçar na minha casa. Na minha casa não, porque pobre não tem casa. Na minha maloca. Eu vou fazer um pato ao molho pardo pra vocês lá na Ilha Grande.

Jaguar - É uma boa dica.
O Nelson Pereira dos Santos me levou num tal de Saracura, um restaurante ali no posto 4, que tem comida do Norte, eu comi um pato no tucupi que pelo amor de Deus. De pato só tem o nome e de tucupi só tinha água.

Chico - Você conheceu ou viu o Getúlio?
Vi, falei, conheci por causa da amizade que eu tinha com o Gregório.

Chico - E o que você diz dele?
Para mim o Getúlio Vargas foi um dos homens que mais favoreceram a classe pobre do Brasil e que mais aniquilou o país.

Garcez - Você conheceu o Prestes nessa época de cadeia?
General Luís Carlos Prestes? Eu tirei cadeia com ele na Casa de Correção. Ele, Elias Toras e doutor Belmiro Valverde. O Prestes foi um grande companheiro e as regalias dele eram as mesmas que as minhas. O direito que ele tinha eu tinha.

Jaguar - Quais outros presos políticos que estiveram em sua companhia?
No meu tempo teve esse menino, o Agildo Barata, um engenheiro não sei o que Pinto, o Graciliano Ramos.

Jaguar - Diz alguma coisa sobre o Graciliano Ramos.
Isso é meio difícil, porque ele era preso político e eu era preso comum.

Jaguar - Eles eram bem tratados?
Os presos políticos do Brasil, na época de Getúlio Vargas, sempre foram bem tratados e muito bem acolhidos.

Fortuna - Bem acolhidos não há a menor dúvida.

Millôr - Você conheceu o Manso de Paiva, que assassinou o Pinheiro Machado?
Conheci na Casa de Correção. Foi um bom detento, nunca deu alteração. Ele tirou 19 anos de cadeia dentro da cela número 2 da Casa de Correção.

Jaguar - Era manso, mesmo.

Fortuna - Qual é a sua concepção da Lapa de hoje?
Olha, enquanto eu for vivo a Lapa não morrerá.

(Extraído de As Grandes Entrevistas do Pasquim, 1975, Jaguar – 1ª edição)


Entrevista de Raul Seixas ao Jornal Pasquin, Rio de Janeiro, Novembro de 1973

O PASQUIM - Você surgiu publicamente com Ouro de Tolo. Mas nós queremos que você conte o seu início, desde o princípio mesmo.
RAUL - Vamos ver. Vamos voltar a 1959. Eu tinha um conjunto de rock, lá em Salvador. Eu morava perto de uns garotos do consulado, eles me apresentaram uns discos de rock...

O PASQUIM - Qual consulado?
RAUL - O americano. Estava aquela coisa acontecendo nos Estados Unidos e nós tomamos conhecimento. Nós fizemos um conjunto de rock em Salvador, e a gente viajava pra todo interior, fazendo aquela coisa, assumindo mesmo, vivendo aquela coisa da época.

O PASQUIM - Como é que chamava o conjunto?
RAUL - Os Panteras. Porque todo conjunto daquela época tinha nome de bicho.
O PASQUIM - Era um conjunto de quantos?
RAUL - Eram quatro pessoas. Guitarra, baixo e Bateria.

O PASQUIM - Krig-Ha, onde fica?
RAUL - Krig-Ha seria um rótulo. É uma sociedade que existe hoje no mundo inteiro, com vários nomes. Aqui no Brasil nós batizamos com o nome de Krig-Ha, que é o grito de guerra do Tarzan. Você deve ter lido Tarzan, né? Khig-Ha significa "cuidado"!

O PASQUIM - Bandolo é inimigo, né?
RAUL - É. Aí vem o inimigo. Tinha o dicionário de Tarzan na primeira página. Você lia e tinha a tradução. Eu sabia aquilo decorado. Mas essa sociedade promove acontecimentos. O primeiro acontecimento que essa sociedade promoveu foi o disco, o LP Krig-Ha, Bandolo!

O PASQUIM - E aquele símbolo da sociedade? A chave?
RAUL - Aquele símbolo é o símbolo de Amon Ra, acrescido de uma chave. Esse símbolo tem uma história interessante. Quando o Paulo Coelho, meu parceiro, tava em Amsterdã, em 67, ele estava usando um símbolo hippie no pescoço. E veio um sujeito estranhíssimo e arrancou o símbolo do peito dele e colocou esse símbolo, sem a chave e disse: "Não é nada disso. Agora é isso." Ele ficou assustadíssimo com aquele símbolo no pescoço, mas começou a usar. E nós fomos uma vez, há pouco tempo, escrever uma peça, que nós vamos lançar para o ano. Fomos lá em Mato Grosso, numa tribo de índio. E numa barraquinha de índio tava vendendo esse mesmo símbolo. Uma coisa incrível e batizamos como o símbolo da sociedade.

O PASQUIM - Fale um pouco sobre a sociedade.
RAUL - Como eu estava dizendo, essa sociedade promove acontecimentos. O primeiro foi o LP. O segundo foi uma procissão que foi muito bem sucedida. Foi muito bonito. A gente levou uma bandeira na rua. Uma explosão. Porque vocês sabem que tem havido uma série de implosões. Nós saímos à rua, cantando, foi muito bonito. A terceira foi esse show de teatro, esse show que nós estamos fazendo agora. E a quarta vai ser o piquenique do papo. Nós vamos convidar todos os artistas, de todos os campos e vamos fazer um piquenique bem suburbano, no jardim botânico. Todo mundo. Pra conversar. Um rapaz já se prontificou a fazer um discurso sobre "A Maldade das Formigas."

O PASQUIM - Qual é o fim específico da sociedade? A que ela se propõe? Ela segue uma "filosofia"?
RAUL - Essa sociedade não surgiu imposta por nenhuma verdade, nenhum líder. Não houve liderança no mundo inteiro, como se fosse tomada de consciência de uma nova tática, de novos meios.

O PASQUIM - Da própria sociedade?
RAUL - É, do próprio mecanismo da coisa. Nós estamos correspondendo com pessoas que fazem parte dessa sociedade, inclusive Jonh Lenon e Yoko Ono. Eles fazem parte da mesma sociedade, só que com outro nome. Nós mantemos uma correspondência constante com eles.

O PASQUIM - Voltando à sua biografia. Você poderia explicar sua formação literária, como você chegou a esse texto?
RAUL - Isso aí é uma coisa interessante. Antes de eu vir pro Rio eu pensava em ser escritor. Eu sempre escrevi. Antes de cantar, eu pensei em escrever. Eu tenho alguma coisa escrita guardada no baú , que penso em publicar algum dia. Eu sou muito dado à filosofia, eu estudei muito filosofia, principalmente a metafísica, ontologia, essa coisa toda. Sempre gostei muito, me interessei. Minha infância foi formada por, vamos dizer, um pessimismo incrível, de Augusto dos Anjos, de Kafka, Schopenhauer. Depois eu fui canalizando e divergindo, captando as outras coisas, abrindo mais e aceitando as outras coisas. Estudei literatura, comecei a ver a coisa sem verdades absolutas. Sempre aberto, abrindo portas para as verdades individuais. Assim, sabe? E escrevia muita poesia. Vim pra cá publicar.

O PASQUIM - Você teve a intuição de que a música seria um veículo mais imediato de comunicação?
RAUL - Essa tomada de consciência que eu tive foi há pouco tempo, uns dois anos atrás. Porque eu usava a música por música. E por outro lado eu queria atingir uma coisa pela literatura. Mas eu vi que a literatura é uma coisa dificílima de fazer aqui, de comunicar tão rapidamente como a música. Eu tive uma escola muito importante, que foi a CBS como produtor de discos de Jerry Adriani, de Wanderléa, daquela coisa toda de iê-iê-iê. Eu produzia discos para o Trio Ternura , aquele pessoal. Foi uma vivência fantástica para mim. Aprendi muito a comunicar.

O PASQUIM - E o Paulo Coelho, teu parceiro?
RAUL - Eu conheci o Paulo na Barra da Tijuca, num dia que tava lá. Às cinco horas da tarde eu tava lá meditando. Paulo também tava meditando, mas eu não o conhecia. Foi o dia que nós vimos um disco voador.

O PASQUIM - Você pode falar nisso, já que tá na moda, todo mundo vendo disco voador de novo. Como é que foi isso?
RAUL - Foi depois do FIC, em que eu cantei o Let Me Sing.

O PASQUIM - Ano Passado.
RAUL - Cinco horas da tarde. Então eu vi. Enorme, rapaz, um negócio muito bonito. Inclusive os jornais levaram a coisa pro lado sensacionalista: O cara viu o disco voador. "O profeta do apocalipse." Eu dei muita risada com isso. Mas não foi nada, foi um disco muito bonito.

O PASQUIM - Dá pra descrever o disco?
RAUL - Dá sim. Foi... era meio assim... prateado. Mas não dava pra ver nitidamente o prateado porque tinha uma aura alaranjada, bem forte, em volta. Mas enorme, entre onde eu estava e o horizonte. Ele tava lá parado, enorme. O Paulo veio correndo, eu não conhecia ele, mas ele disse: "Cê tá vendo o que eu tô vendo?" A gente aí sentou e o disco sumiu num ziguezague incrível.

O PASQUIM - Durou quanto tempo mais ou menos?
RAUL - Uns dez minutos.

O PASQUIM - Qual foi o efeito disso em vocês?
RAUL - Ouro de Tolo, que pintou aí. Essa música.

O PASQUIM - Usaram muito esse disco pra dizer que você era místico, um negócio assim. Esse disco voador foi pra parada de sucesso.
RAUL - Falta do que dizer. Não se tem mais o que falar hoje. Tem que se falar mesmo neste lado de disco voador, profeta do apocalipse. O homem que viu o disco voador dá IBOPE, chamam ele pro Sílvio Santos.

O PASQUIM - Independente dessa sociedade, é claro, e das coisas em que você acredita, você não acha que o tipo de atitude que você toma publicamente influi nisso? O fato de colocar nas suas entrevistas que você viu um disco voador, o fato de você ter feito sua procissão e a entrevista que você deu à Manchete dentro do avião, no aterro...
RAUL - Aquela foi gozadíssima. Ela ligou lá pra casa e disse que queria fazer uma matéria comigo, eu disse: "Pois não, mas eu tenho que fazer uma viagem de avião. Eu só dou entrevista dentro do avião." Era aquele avião que tem lá no aterro. Aí nós fomos pro avião 4 horas da tarde. Ela já tava me esperando lá. E Paulo Coelho com a mala. Todos nós entramos no avião "Cê tá gostando da viagem?" Pusemos o cinto de segurança. E ela com um medo de fazer a entrevista, um medo horrível de mim. Aí surgiu a aeromoça, que era minha mulher, servindo sanduíche, cafezinho. Ela ficou apavoradíssima. Mas foi uma brincadeira que nós fizemos, para usar a imaginação.

O PASQUIM - Raul, os sinais, suas letras, está tudo ligado com um magicismo seu. Você brinca muito com isso não? Magicismo, ironia mágica, seja lá qual for. Pra botar isso bem curto: Qualé?
RAUL - Vamos citar o Apocalipse bíblico. Foi escrito numa época incrível, você tinha que falar uma linguagem simbólica, uma linguagem mágica. Mas o Apocalipse é uma coisa que se adapta a qualquer época.

O PASQUIM - Principalmente a atual. É, algumas épocas mais do que as outras, alguns lugares mais do que os outros.
RAUL - É quase a mesma linguagem que nós estamos usando pra tentar dizer, tentar chegar a um objetivo. Não é um objetivo de uma verdade absoluta, porque ninguém aqui quer chegar a uma verdade absoluta e impô-la. Apenas se quer abrir as portas. Para as verdades individuais.

O PASQUIM - Então você quer abrir uma porta na cabeça de quem tá te ouvindo. Não há uma hora em que se fecha de repente? O perigo de fazer essas coisas, o perigo do magicismo, da maneira de dizer as coisas...
RAUL - É uma escada.

O PASQUIM - Mas ao mesmo tempo há o perigo de você se fechar dentro do magicismo! Há esse perigo, você vê esse perigo?
RAUL - Não. É uma escada. Um estágio. Nós estamos no primeiro estágio. Estamos transando com a fase "Terra" da coisa. Esse primeiro estágio tem que ser assim. O segundo estágio é outra coisa, já é mais aberto. Não se pode começar uma coisa assim, você tem que manipular. Por exemplo, Raul Seixas. Eu tô segurando Raul Seixas ali embaixo, como uma marionete. Eu tô aqui em cima. Eu sei até que ponto ele deve subir um pouquinho mais, cada vez mais. Mas nunca ele pode chegar aonde eu estou, não vou comunicar mais.

O PASQUIM - Esse Raul Seixas que você manipula, que está lá embaixo, é em função de quem te escuta e te vê?
RAUL - Esse Raul Seixas que está no teatro Tereza Raquel, cantando esse tipo de música, dando um certo toque mágico na coisa, é necessário. Usando muito a imaginação, a intuição. Longe, fugindo do logicismo. Esse logicismo radical, kantiano, de Pascal. Eu vejo isso como um estágio.

O PASQUIM - Você faz isso mais para se entender ou pra que os outros te entendam?
RAUL - Pra que os outros me entendam. Pra que eu penetre em todas as estruturas, em todas as classes, em todas as faixas. Todo mundo tá cantando A Mosca na Sopa.

O PASQUIM - Eu acho que o magicismo seria uma entrelinha. Você não tem medo então de perder a linha? Você vai tanto na entrelinha que acaba perdendo a linha.
RAUL - Não, que é isso? Sabe por que? Eu tenho medo de hermetismo. Eu acho que não é mais fase de hermetismo.

O PASQUIM - Mas o magicismo pode cair.
RAUL - Mas é um magicismo estudado. É dosado, nêgo.

O PASQUIM - Se você não estiver muito sob controle, pode cair nisso. Isso exige um tremendo autocontrole, conhecimento de si próprio, senão você embarca no próprio som do que você está dizendo. Tem que saber o que você está fazendo.
RAUL - Eu tô fazendo.

O PASQUIM - É isso que preocupa, se você está consciente. Ô Raul, como é que você vê os seus contemporâneos no Brasil? Os que fazem outras coisas, que escrevem romances, fazem poesias, trabalham em jornal, televisão etc.
RAUL - Como eu vejo a realidade? Isso aí é fogo, rapaz.

O PASQUIM - Use o magicismo.
RAUL - Peraí. Eu vou falar uma coisa aqui. Eu vou falar sobre os cabeludos. Eu li outro dia um negócio de Pasolini na Veja. Vocês leram? Achei fantástico. Você já não sabe mais quem é quem. Tá aquela coisa de cabeludo, tá todo mundo estereotipado. Por isso é que eu faço questão de dizer que eu não sou da turma pop, que eu não tô comendo alpiste pop. Eu sei lá, eu acho que tá todo mundo de cabeça baixa, tá todo mundo schopenhauer, todo mundo num pessimismo incrível. Essa geração audiovisual, e digo isso muito maldosamente, eu chamo eles de "audiovisuaizinhos". Minha mulher fala comigo que eu não devo fazer isso com eles, porque a garotada tá sabendo. Tá todo mundo de cabeça baixa, quieto, conformado. Eu sou um cara muito otimista nesse ponto. Sei lá, eu não sei se é a minha correspondência com o planeta, vejo a coisa em termos globais. E tá realmente acontecendo uma coisa fantástica, que é essa certeza e conscientização de que você deve ser um rato, transar de rato pra entrar no buraco de rato, vestir gravata e paletó para ser amigo do rato. E depois as coisas acontecem. Não ficar de fora fazendo bobagem, de calça Levis com tachinha. Esse tipo de protesto eu acho a coisa mais imbecil do mundo, já não se usa mais. Eles tão pensando como Jonh Lenon disse, "they think they're so classless and free". Mas não são coisa nenhuma, rapaz, tá todo mundo dentro de uma engrenagem sem controle.

O PASQUIM - Vamos falar do tempo em que você era produtor de discos na CBS. A sua posição profissional era praticamente ditatorial. Como é que era a tua transa pessoal com essa gente?
RAUL - Eu fazia aquela coisa porque sabia que era uma coisa inconseqüente. Eu fazendo ou não, outra pessoa ia fazer. Eu estava fazendo aquele trabalho, o diretor da CBS queria, e enquanto isso ia aprendendo a usar aquele mecanismo.

O PASQUIM - Você estava de rato?
RAUL - Exatamente. Eu estava de rato, vestido de rato. Foi quando surgiu a idéia de eu contratar Sérgio Sampaio e Edith Cooper, que é uma boneca lá da Bahia, um cara fantástico, muito amigo meu. Nós fizemos um disco chamado Sociedade da Grã Ordem Kavernista Apresenta: Sessão das Dez. Mas o disco foi misteriosamente tirado do mercado porque não era a linha da CBS. Esse disco foi quando eu botei as manguinhas de fora, foi quando eu comecei a fazer o trabalho. Era um disco que mostrava o panorama atual, o que tava acontecendo, o caos todo daquela época. O caosinho bonitinho que tava acontecendo naquela época.

O PASQUIM - Aí você foi expulso da CBS.
RAUL - Fui expulso em função desse LP. E também porque fui no festival Internacional da Canção, cantar Let Me Sing.

O PASQUIM - Eles não queriam isso?
RAUL - Não. Eles disseram: "Ou você é produtor ou você é cantor." Eu tinha que optar.

O PASQUIM - Raul o que te levou ao hermetismo? O que você andou fazendo de coisas herméticas, e o que te deu a noção de equilíbrio?
RAUL - Foi o primeiro LP que gravei na Odeon. Foi um LP louco, rapaz. Um LP extremamente filosófico, metafísico, ontológico, que falavam em sete xícaras, ou seja, as sete perguntas aristotélicas. Ou seja, as fontes do conhecimento.

O PASQUIM - Como é que chamava o disco ?
RAUL - Raulzito e seus Panteras.

O PASQUIM - Raul, você tem filhos?
RAUL - Tenho uma filha.

O PASQUIM - Em 59, você fazia rock na Bahia. Você conheceu Caetano e Gil na Bahia?
RAUL - Conheci o Gil.

O PASQUIM - Isso foi antes do tempo de Gessy-Lever?
RAUL - Do tempo que eu fazia jingle também. Só que eu fazia jingle rock e ele fazia jingle bossa-nova. A gente se conhecia, 59, 60 por aí.

O PASQUIM - Depois desse contato, como é que foi ficando? Distante?
RAUL - Era uma coisa lá e outra aqui. Nós tínhamos um lugar, o cinema Roma, onde a gente promovia shows de rock.

O PASQUIM - Bossa-nova não?
RAUL - Bossa-nova era no teatro Vila Velha. Era uma coisa bem separada mesmo. Existia um conjunto lá, a Orquestra de Carlito, com Caetano e Gil. E existiam os Panteras. Duas coisas completamente diversas. Mas no fundo eu acho que estava todo mundo querendo chegar a mesma coisa, era só problema de linguagem.

O PASQUIM - Raul, o pessoal que viu o show em São Paulo diz que, além da crítica leve que você fez ao Roberto Carlos, tinha uma crítica ao Caetano também.
RAUL - Tinha não.

O PASQUIM - E a crítica ao Roberto?
RAUL - É uma brincadeira. Porque quando Ouro de Tolo saiu, tava saindo uma música do Roberto em que ele agradece ao Senhor pelas coisas recebidas. Ele disse que agradece, eu digo que eu devia agradecer. Foi isso que os caras pescaram.

O PASQUIM - Você está a fim de ocupar a vaga de guru que o Caetano Veloso deixou?
RAUL - Eu não sei se é isso, não. Acho que Caetano tá sabendo o que tá fazendo. Ele sabe exatamente.

O PASQUIM - Caetano era guru ou não era?
RAUL - Não... Eu acho que ele não assumiu esse negócio de guru. Eu acho que viram ele como uma tábua de salvação, as pessoas tavam precisando dele, tava na hora de um apoio. Então escolheram o Caetano.

O PASQUIM - Ele ainda é o líder?
RAUL - O que você acha?

O PASQUIM - Eu acho que é. E você o que acha?
RAUL - Eu acho que tanto Caetano como Gil, embora sendo trabalhos diferentes, são incríveis.

O PASQUIM - Você falou sobre Caetano e Gil, falou sobre Jonh Lennon. E a sua influência do Bob Dylan?
RAUL - Isso é engraçado, todo mundo fala sobre esse negócio do Bob Dylan. Eu gosto de Dylan, mas não foi uma coisa marcante.

O PASQUIM - Ouro de Tolo tem uma influência.
RAUL - A letra de Ouro de Tolo saiu antes da música. Veio a letra primeiro. Eu só podia dizer aquela monstruosidade de letra quase só falando. Então calhou. Aquela coisa de Dylan, falada, calhou.

O PASQUIM - No ato de compor, o que vem primeiro na maioria dos casos, a letra ou a música?
RAUL - Geralmente vêm juntas.

O PASQUIM - Seu espetáculo é a aplaudido com um entusiasmo, digamos assim, com uma zorra total no teatro. Isso pode ser a força de seu recado. Um recado tão forte que o pessoal quer aplaudir, mas o recado ainda está um pouco na frente do momento. O que você acha?
RAUL - Eu não vou dizer por mim, mas Paulo Coelho acha isso. Ele acha que as pessoas ainda estão em dúvida, estão com um certo receio, assustam um pouco.

O PASQUIM - Raul, você falou sobre a sociedade. E outros planos para o futuro?
RAUL - Eu já tô com o meu segundo LP na cabeça. É como um degrau. Eu dividi o trabalho em quatro fases, simbólicas, é claro, dentro daquilo que nós já falamos, de magicismo. Fase Terra, Fase Fogo, Fase Água e Fase Ar. Somente com a identificação. Essa fase fogo vai ser diferente dessa, dentro do mesmo tipo de música, mas não exatamente iê-iê-iê. É outra coisa, eu prefiro que seja surpresa. Vejam depois de pronto. Eu tô seguindo uma orientação geral, em que eu recebo e dou informações. Em todos os quatro cantos do mundo, a gente tá sempre recebendo, tá tendo informações. Essa outra fase é uma fase de escada mesmo. Um lugar que você vai chegando gradativamente, sabendo aos poucos.

O PASQUIM - Basicamente que público você atinge?
RAUL - Todas as classes. Isso é que é bom. Sabe por quê? Eles assimilaram Ouro de Tolo dentro de níveis diferentes, mas no fundo era a mesma coisa. O intelectual recebia de uma maneira, o operário de outra. Lá em casa tá acontecendo uma coisa muito engraçada. Atrás do edifício estão construindo um outro enorme, então os operários cantam o dia inteiro Ouro de Tolo, com versos que eles adaptam para a realidade deles. Eles transformam os versos, dizem: "Eu devia estar feliz por que eu ganho vinte cruzeiros por dia e o engenheiro desgraçado aí..." Eu ouço o dia inteiro eles cantando isso aí. E as cartas que eu recebi da revista POP, que fez uma transação aí, negócio de "Diga o que você acha da música Ouro de Tolo." Veio do Brasil inteiro. Fantásticas aquelas cartas, eu guardo um monte. Eu li essas cartas todas. Todo mundo entendeu, dentro de uma conotação própria, dentro de um nível diferente. Eu achei fantástico isso. Quer dizer que tá funcionando.

O PASQUIM - Você tem algo a declarar para as novas gerações?
RAUL - Não, é uma juventude sadia, alegre, satisfeita, feliz e contente. Comendo alpiste. Amém.

Fonte: Casa do Bruxo